23 fevereiro 2014

Uma narração chamada Tempo.



2 de abril de 2038. O estranho dispositivo que viveu desacordado desde o nascimento em meu corpo acabara de despertar, carregando junto dele a morte, arrancando de mim o único vestígio de existência. E por ironia da ciência e não do destino, estou às vésperas de completar meio século de vida.
Há 70 anos, o governo federal desenvolveu uma técnica de controle à natalidade que nos permitia, durante 50 anos, viver sob qualquer tipo de benefício e bens materiais. Tínhamos o que queríamos, íamos onde quiséssemos e éramos jovens até a morte. Uma vida perfeita, mas insuficiente. O que adianta ter tudo sem ter nada?
Recebi a criação de uma família coberta de amor, suguei tudo que pude do sentimento materno que o mundo carecia, mas me senti angustiado ao ver que foi ofertado a mim uma vida supérflua e degradante. Com o passar dos anos, começa-se a perceber que nada valia quando o mais importante faltava: o amor. Por isso, entre as mais remotas lembranças, busquei em minha alma o real sentido de se estar ali e o encontrei.
Faltam seis horas. Vaguei pelas ruas cobertas de ouro e prata, vi a angústia em qualquer canto que passava; na esquina os jornais gritavam: “mais um fracasso da ciência, a morte ainda é inevitável”. Era impossível arrancar o dispositivo do corpo, mas nunca se faltou esperança.
Tenho três horas. Peguei minha mulher e meus filhos e fui ver o mar, onde pretendia ficar até o fim, separei o álbum de fotos, precisava alimentar neles o que faltava nessa sociedade obsoleta e infecciosa:
- Peço que tenham amor e tentem se libertar de tudo daqui. – suas carinhas me rejuvenesceram cinqüenta anos. – Não basta ter tudo, quando não se há o que viver. Preserve os bons momentos ou morram tentando.
E tudo acabara. O relógio parara junto com a vida, senti a primeira pontada e era a morte chegando. Tudo o que criei, plantei e busquei se esvaiu no pouco que pude ensinar aos que ficaram, que dependiam de mim. Isso é um adeus. Porém, eu sei que terá um dia que não precisaremos de limites, 50 anos não será nada. Não acredito em céu, mas busco a felicidade porque, hoje, eu sei que o tempo é curto. Muito curto. Então peço que acredite que tudo acabará um dia. O relógio é traiçoeiro, ele pode parar sem que você espere.
Dez segundos, nove, oito, sete, seis... 

Beijos sem marcações de tempo a todos.
Izabella Rendeiro